Caso da trabalhadora resgatada da escravidão na casa de desembargador

O Projeto Ação Integrada:Resgatando a Cidadania e a COETRAE-RJ repudiam a decisão judicial que permite o retorno da trabalhadora Sônia, resgatada de trabalho escravo doméstico em Santa Catarina, ao local de exploração, no caso, a casa dos patrões, ainda durante a investigação do caso.

O atendimento pós-resgate multidisciplinar que estava em andamento foi bruscamente interrompido.

A decisão ignora a impossibilidade de compreender a real vontade dela por conta de nunca ter sido alfabetizada na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) ou em português. Também desconsidera o fato de que uma pessoa escravizada constrói vínculos reais com seus exploradores e isso não impede que uma situação grave de violações de direitos aconteça ou a necessidade dessa pessoa ser protegida.

A Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Rio de Janeiro (COETRAE-RJ) publicou, no dia 15/09/2023, uma nota oficial repudiando a decisão judicial que permite o retorno da trabalhadora Sônia. A nota foi assinada por todas as organizações participantes na comissão. Faça download da nota aqui.

Nota de Repúdio da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho
Escravo do Rio de Janeiro (COETRAE-RJ):

A Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Rio de Janeiro
(COETRAE-RJ) expressa sua veemente repulsa diante do recente julgado em
desfavor de Sônia Maria de Jesus, uma mulher negra, com deficiência auditiva,
privada do acesso à alfabetização e à língua brasileira de sinais (LIBRAS), que foi
encontrada pelas autoridades competentes trabalhando em condições análogas à
escravidão na residência de um Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina. Sua história é emblemática e revela a complexidade dos desafios que ainda
enfrentamos na luta contra essa prática.
Após uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Polícia
Federal (PF) e da Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT), Sônia foi encaminhada a uma
casa de acolhimento institucional, onde finalmente se encontrava em um ambiente de
cuidados e assistência à saúde física e mental. No entanto, é com indignação que
observamos o desenrolar dos acontecimentos posteriores.
A partir de decisão proferida pelo ministro André Mendonça, foi determinado que Sônia
voltasse à casa da família sob investigação, mesmo depois de décadas de exploração
e desprezo. De acordo com autoridades e com os profissionais que a atendiam, Sônia
não estava em condições de voltar para a casa dos escravocratas, com destaque para
o fato de que a vítima ainda não possui domínio de LIBRAS, nem da língua
portuguesa, que possibilite atestar em juízo a manifestação autônoma e indubitável de
sua vontade. Considerando-se ainda situações inesperadas, com alta carga de
pressão emocional, sem a devida consciência das possíveis consequências,
envolvendo relações de poder desiguais, processos de tomada de decisão nestes
contextos são questionáveis. Observa-se, além de tudo, que o projeto singular de
acompanhamento pós-resgate, para estímulo à autonomia de Sônia, elaborado de
modo multiprofissional e em rede pelas políticas públicas, foi bruscamente
interrompido.
Não obstante, afirmamos que os agentes públicos responsáveis pela ação não podem
ser conviventes com a perpetuação de uma situação de flagrante e reiterada violação
de direitos. Ao contrário, estão imbuídos da missão de assegurar o irrestrito acesso à
dignidade humana e demais direitos comprovadamente negados à vítima. Deste
modo, é imprescindível que ela seja afastada do ambiente de exploração e do contato
com os escravocratas até a conclusão das investigações.
Conforme relatado pela família biológica de Sônia, ela foi adotada ilegalmente pela
família escravocrata quando ainda era uma criança, e sofreu toda sorte de
negligências, tendo lhe sido negados o acesso à saúde e à educação, além da
submissão a uma das piores formas de trabalho infantil: o trabalho doméstico.
Por todas essas razões, é inaceitável que tais decisões tenham sido tomadas em
desconsideração ao sofrimento e à vulnerabilidade da vítima, perpetuando uma
situação violação e impondo um grave obstáculo à efetiva erradicação do trabalho
escravo no Brasil.
É importante ressaltar que a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo
do Rio de Janeiro (COETRAE-RJ) está acompanhando o caso e conta com diversos
atores comprometidos em sua resolução. Como ressaltado pelo coordenador Raul
Brasil da Auditoria-Fiscal do Trabalho do Rio de Janeiro, o combate ao trabalho
doméstico análogo à escravidão é repleto de desafios e depende do apoio contínuo
das instituições.
A COETRAE-RJ permanece unida em sua missão de enfrentar qualquer forma de
exploração laboral, especialmente aquelas que visam submeter seres humanos ao
trabalho análogo à escravidão. Exigimos respostas adequadas e justas em relação a
este caso que, sobretudo, não coloquem a vítima em situação de revitimização ou
retraumatização como a referida decisão que autoriza que ela restabeleça o convívio
com a família investigada por violar gravemente seus direitos.
Reforçamos nosso compromisso de continuar lutando incansavelmente pela
erradicação do trabalho escravo em nosso país, conforme se obrigou em diversas
normativas internacionais e nacionais, a exemplo da Convenção nº 189 da OIT relativa
ao trabalho digno para o trabalho doméstico (ratificada pelo Brasil em 2018). É urgente
que o Judiciário reconsidere essa decisão e assegure o pleno acesso à justiça para
Sonia Maria de Jesus e todas as vítimas de trabalho escravo no Brasil.
Rio de Janeiro-RJ, 15 de setembro de 2023

Desembargador Luiz Borba. Reprodução: internet

RELEMBRE O CASO:

A trabalhadora Sônia foi resgatada de situação de trabalho escravo doméstico em junho pela operação em conjunto do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Polícia Federal (PF) e da Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT) e foi encaminhada para uma instituição de acolhimento onde começou a ter assistência física e mental, bem como a alfabetização. Ela foi encontrada pelas autoridades trabalhando em condições análogas à escravidão na residência de um Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

No entanto, a decisão judicial proferida pelo ministro André Mendonça determinou que ela voltasse para a casa do explorador (ainda investigado) caso ela manifestasse vontade de forma autônoma e inequívoca, sem considerar que a falta de alfabetização dela impossibilita a intepretação clara de sua vontade. Desse forma, ela foi retirada do abrigo onde estava acolhida e se desenvolvendo e seu acompanhamento pós-resgate foi interrompido. A trabalhadora está morando com os investigados desde o ínicio de setembro deste ano.

OUTRAS MANIFESTAÇÕES DE REPÚDIO:

SINAIT BAHIA – Sindicato dos Auditores-Fiscais do Trabalho – 07/09/2023

Instituto Trabalho Digno – 11/09/2023

Nota de Repúdio COETRAE-RJ – 15/09/2023

Nota de Parecer da CONADE – Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – 20/09/2023

Nota Pública da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) – 29/09/2023

REPORTAGENS ESPECIAIS SOBRE O CASO:

“Desembargador é suspeito de manter mulher surda, que nunca aprendeu libras, em trabalho análogo à escravidão por 37 anos” – Fantástico/TV Globo – 11/06/2023

“STF autoriza desembargador de SC a ver mulher mantida sob escravidão e retorno dela à casa dele” – Estadão – 08/09/2023

“Álbum de fotos e mala: veja o reencontro do desembargador com a mulher mantida sob escravidão” – Estadão – 15/09/2023

“‘Ela tem família’: irmãos buscam reencontro com doméstica apontada como escravizada em SC” – Repórter Brasil – 20/09/2023

“Irmãos vão encontrar doméstica apontada como escrava de desembargador em SC” – Uol – 20/09/2023

“Brasil é questionado na OEA sobre resgatada da escravidão na casa de juiz” – Uol/Leonardo Sakamoto – 27/10/2023